Da tela ao tango
Uma delícia, o documentário sobre Paulo Gracindo, dirigido por Gracindo Júnior. O ator, quase alagoano de nascimento (mudou-se do Rio de Janeiro para cá recém-nascido), foi grande nos palcos até mesmo quando a memória já lhe aplicava punhaladas traiçoeiras.
Ao final do filme, Lima Duarte, seu parceiro em incontáveis aventuras, deu o recado:
– O Paulo diria hoje: “Lima, a televisão tinha de dar nisso aí”.
Claro que não era exatamente um elogio. No melhor da teledramaturgia brasileira, vemos a onipresença marcante do nosso Paulo Gracindo: O Bem-Amado, Roque Santeiro, Gabriela, O casarão, quase todas produzidas no núcleo dirigido pelo ótimo Dias Gomes.
Do seu grupo de criação fazia parte o agridoce poeta Ferreira Gullar. É dele a frase demolidora:
– Não há espaço para a arte na televisão.
É aquela velha história: nós podemos até não saber definir com palavras o que é arte, mas a identificamos quando nos deparamos com ela.
Assim acontece com o cinema argentino. A produção dos nossos hermanos para a grande tela tem me encantado cada vez mais. Já há, pelo menos, um grande clássico de todos os tempos: O segredo dos seus olhos. Mas não para por aí: Fred e Elsa, O filho da noiva, Viver duas vezes, O cidadão ilustre – estes mais recentes – são a prova de que eles dominam a sétima arte. (Os cinéfilos ainda podem buscar, na década de 1980, A história oficial, a narrativa dolorosa e pungente da ditadura militar na Argentina).
São histórias humanas bem contadas, com atores em que a beleza nem sempre é fundamental, e sem os efeitos especiais tão ao gosto de Hollywood. Um cinema feito com sensibilidade e refinada criatividade.
O que eles têm que nós não temos?
Acho que a pergunta não é bem esta. Nós é que temos, sim, uma teledramaturgia que cresceu demais e invadiu, indevidamente, a nossa produção cinematográfica. Passamos a produzir obras, em regra e com raras exceções, de puro entretenimento e de baixa qualidade, na maioria das vezes. Calma! Há bons filmes brasileiros, mas em quantidade bem menor do que o nosso reconhecido talento na música e na literatura poderia realizar.
A ação avassaladora da TV resultou na sentença de Gullar. Ficamos sem arte, a sétima – repito, quase -, por trilharmos o caminho sem riscos da produção comercial e “noveleira”. A televisão busca desesperadamente o gosto médio, o que não a empurra para o alto. Como dizia Mestre Ariano Suassuna, “o gosto médio faz mais mal à arte do que o mau gosto”.
Mas eu queria mesmo era falar de mau humor, produzido em larga escala por essas bandas. A motivação: a iracunda reação a um chiste do Papa Francisco, na semana que passou. Em tom de blague, o que lhe é muito usual, ele respondeu assim a um pedido de bênção para o Brasil – feito por um padre paraibano, em visita ao Vaticano: “Vocês não tem salvação. É muita cachaça e pouca oração”.
Caí na gargalhada, confesso, ao ouvir a manifestação graciosa do octogenário Francisco. Deixo claro que isso não tem nenhuma relação com religião, até porque religião só tem a ver com ela própria, a religião – nada de fé ou algo semelhante.
Um apresentador de telejornal, no mesmo dia, resolveu tomar as dores da nação e rebateu: “Os argentinos também bebem muito vinho” – e trancou a cara, o bobão.
As redes sociais fizeram o que as redes sociais sabem fazer: guerra ao piadista, um senhor de idade que se deu ao direito de ser uma pessoa bem-humorada, confirmando que está vivo e se negando a ser embalsamado antes que seu corpo esfrie.
Nunca gostei, eis a minha verdade, dessa persistente pregação da rivalidade Brasil x Argentina. Sigo Belchior, o talentoso cearense que revelou sua preferência em vida – o tango também me cai bem melhor que um blues.
@conexaonawebofc
Fonte: Ricardo Mota