Equipe responsável por cirurgia de mulher trans que morreu em fevereiro segue atuando em endereço sem alvará da vigilância
A equipe investigada pela cirurgia da jovem trans Lorena Muniz, que morreu em fevereiro após ter sido deixada sedada durante um incêndio em uma clínica de estética no Centro de São Paulo, continua atuando em outro endereço irregular na capital. Integrantes da equipe são acusados de negligência em diversos processos judiciais, como o G1 revelou, e respondem a pelo menos um inquérito policial, além do que investiga a morte de Lorena.
O homem apontado como responsável pelo grupo é Paulino de Souza, que segue oferecendo serviços de cirurgia plástica. Ele se apresenta como doutor nas redes sociais, apesar de não ser médico.
Após relatos de que ele continuava atuando em uma casa na Avenida Nove de Julho, na Zona Sul da capital, o G1 foi até o local no último sábado (17). Paulino e outras pessoas foram flagradas pela reportagem entrando e saindo da clínica, que não tem alvará (veja vídeo acima).
Uma paciente da equipe, que preferiu não se identificar, confirmou à reportagem que fez uma cirurgia para colocação de silicone no endereço no sábado. A mulher enviou imagens do interior da clínica e da sala de operação. Outras duas mulheres foram vistas saindo enfaixadas do local.
Segundo a Vigilância Sanitária, “não consta licença sanitária no endereço” da Avenida Nove de Julho, ou seja, o espaço não possui alvará para a realização de nenhum tipo de procedimento médico.
Uma equipe da vigilância esteve no local na terça-feira (20), após o G1 pedir posicionamento sobre o fato de a clínica estar fazendo cirurgias no sábado. Na terça, a fiscalização e encontrou o imóvel vazio e com sinais de abandono recente.
Em nota, a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) disse que “a casa encontrava-se fechada e sem sinal de atividade no interior do imóvel, no momento da inspeção” e que vizinhos do local informaram que a casa não é habitada, mas que, “em alguns dias da semana, sacos de lixo preto são vistos no portão”.
O órgão informou que vai intensificar a fiscalização no local.
No local onde ocorreu a operação está registrada a empresa Instituto Dra. Maria Rosa Gimenes Estetica e Beleza. O nome é uma referência à Maria Rosa Gimenes, que foi esposa de Paulino de Souza. O registro do CNPJ está em situação “inapta”.
A investigação da morte de Lorena Muniz ainda está em curso, e por isso o nome dos acusados ainda não foi divulgado oficialmente, mas a Polícia Civil já indiciou seis pessoas por envolvimento no caso. Quatro deles foram responsabilizados por homicídio doloso, quando se assume o risco de matar. Outros dois indiciados respondem por omissão de socorro, por não terem ajudado a vítima a escapar do fogo. Todos respondem pelos crimes em liberdade.
Fontes ligadas ao caso disseram que, entre os investigados, estão diretores da Clínica Saúde Aqui, que fica na Liberdade, onde ocorreu o incêndio, e também responsáveis pela Clínica Paulino Plástica Segura.
Em entrevista exclusiva ao G1, a vigilância sanitária da cidade de São Paulo afirmou que investiga se a clínica onde Lorena morreu faz parte de uma rede que realiza cirurgias plásticas de forma ilegal. A investigação foi revelada pelo diretor da Divisão de Vigilância de Produtos e Serviços de Interesse da Saúde, Giuliano Mussi.
A reportagem não conseguiu contato com Paulino de Souza. Em publicação nas redes sociais nesta terça-feira (20), ele compartilhou vídeos e fotos de mulheres defendendo sua atuação. “Só tenho a agradecer, não é justo acabar com uma clínica de mais de 40 anos por causa de uma coisa que aconteceu”, disse uma das mulheres.
Investigação da morte
A jovem Lorena Muniz, de 25 anos, foi abandonada sedada dentro de uma sala na Clínica Saúde Aqui durante um incêndio no local no dia 17 de fevereiro, segundo seu marido. Lorena morreu na madrugada do dia 22 de fevereiro no Hospital das Clínicas da USP, na Zona Oeste da capital. Segundo relatório do HC, ela teve parada cardíaca por 17 minutos e sofreu queimaduras no nariz e na orelha por conta da fumaça.
Natural de Recife, Lorena estava em São Paulo para fazer uma cirurgia de implante de silicone negociada com Paulino de Souza.
A clínica onde o procedimento seria realizado não tinha Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros (AVCB) para funcionar. Esse documento atesta que o imóvel tem equipamentos adequados para combate a incêndios. Além disso, o local possuía licença sanitária tipo 1, que não permite a realização de procedimentos que utilizem sedação ou anestesia geral.
Representante legal da Clínica Saúde Aqui e de Paulino de Souza, o advogado Daniel Santana Bassani negou que tenha havido negligência em relação à Lorena Muniz. Ele informou que Paulino de Souza alugou uma sala na Clínica Saúde Aqui, na Liberdade, para que a cirurgiã plástica Adriana Moraghi realizasse o procedimento junto com outra médica, cujo nome não foi citado por Bassani.
Segundo Bassani, Silvania Silvestre Gomes Rosa e Denise Batista Scapucin seriam as responsáveis legais pela Clínica Paulino de Souza Cirurgia Plástica, registrada em Taboão da Serra, na Grande SP.
Bassani disse ainda que Paulino de Souza trabalha de forma autônoma, sem vínculo com a clínica que leva seu nome. Ele não soube explicar a relação entre Paulino e as sócias da clínica, mas disse que a empresa levou o nome de Paulino “como uma homenagem”.
Outras clínicas
O G1 visitou o endereço da Clínica Saúde Aqui no último início de junho. O local estava aberto, funcionando com um novo nome. Dez dias depois, a reportagem encontrou o estabelecimento fechado. A vigilância informou que a clínica foi mais uma vez interditada, após uma nova inspeção.
Diretor da Divisão de Vigilância de Produtos e Serviços de Interesse da Saúde, Giuliano Mussi disse que a equipe fiscalizatória foi até o local diversas vezes e encontrou o prédio em reforma por conta do incêndio. Na última visita, a equipe verificou um outro serviço funcionando no local.
“A equipe que estava no local fez uma fiscalização e identificou que o funcionamento do serviço estava irregular e realizou uma nova interdição”, explicou.
Em relação ao novo nome adotado no endereço da clínica Saúde Aqui, o advogado Daniel Santana Bassani declarou que a mudança ocorreu porque a imagem do local teria sido prejudicada pelo caso Lorena Muniz.
“Como a imagem da clínica ficou ruim, orientei aos sócios que encerrassem as atividades da clínica conforme o acontecido e fiz uma intermediação com a Flex Diagnóstico, mas infelizmente a Flex não fez o protocolo devido na vigilância”, disse Bassani.
Os responsáveis pela Clínica Saúde Aqui foram convocados diversas vezes pela vigilância sanitária para entregar o prontuário de Lorena Muniz e esclarecer as circunstâncias de funcionamento do local, mas não responderam à vigilância sanitária.
A Secretaria Municipal da Saúde informou em nota que o comparecimento dos responsáveis foi solicitado em diversas ocasiões, inclusive com chamamento via Diário Oficial do Município, mas não foi atendido.
Quando finalmente a vigilância conseguiu contato, a empresa alegou que toda a documentação sobre o tipo de licença e o prontuário médico de Lorena Muniz foram queimados durante o incêndio.
O advogado Daniel Santana Bassani também alegou que o prontuário da vítima foi queimado durante o incêndio, e declarou que um outro foi feito pela médica responsável.
Vigilância sanitária investiga rede
A vigilância sanitária da cidade de São Paulo investiga se a clínica faz parte de uma rede que realiza cirurgias plásticas de forma ilegal.
Segundo Giuliano Mussi, o órgão ainda precisa realizar mais inspeções para prosseguir com as investigações, já que os responsáveis pelos locais geralmente mudam de CNPJ e utilizam estratégias para atrapalhar a identificação da rede.
O porta-voz da vigilância sanitária municipal destacou ainda que a investigação da clínica onde Lorena Muniz morreu ainda está em curso.
“Essa investigação ainda está acontecendo, até porque é muito difícil em uma única inspeção conseguir atrelar a responsabilidade de um fato que aconteceu numa clínica com outra porque as pessoas utilizam de artifícios, como um novo CNPJ, responsáveis técnicos com nome diferentes, etc”, disse Mussi.
“Para realmente conseguir identificar uma relação precisamos de mais de uma inspeção”, completou o diretor da vigilância.
Outras clínicas
Silvania Silvestre Gomes Rosa e Denise Batista Scapucin responsáveis pela clínica de Taboão da Serra, citadas por Bassani, se apresentam nas redes sociais como intermediadoras da clínica Divas Cirurgias Plásticas. Elas negam ter qualquer ligação com Paulino de Souza.
Segundo relatos nas redes sociais, a Divas Cirurgias funciona na clínica de fertilização Shiloh Day Hospital, no Tatuapé, na Zona Leste de São Paulo, também sem licença para realizar procedimentos cirúrgicos de alta complexidade.
O G1 esteve no local no dia 1 de junho e presenciou duas mulheres trans aguardando na recepção. O local também possui cilindros de oxigênio no segundo andar, equipamento que não é necessário em uma clínica de fertilização.
Vizinhos informaram a reportagem que a clínica tem bastante movimentação de mulheres cis e trans entre segunda e quarta-feira.
A clínica Divas Cirurgias Plásticas não tem CNPJ registrado.
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Fonte: g1