Abel Braga conta história com a máfia na França, monta time ideal e lamenta vices na Copa do Brasil

Abel Carlos da Silva Braga, ou Abel Braga, marcou seu nome na história do futebol brasileiro. O ex-zagueiro de Copa do Mundo assumiu a prancheta em 1985 e assim permaneceu até 2022 – foram quase 40 anos na carreira. Com uma bagagem tão grande no esporte, o treinador abriu o jogo em uma entrevista de mais de duas horas ao Área Técnica, quadro do ge.

O longo bate-papo com o ex-treinador foi recheado de histórias do seu período como jogador, técnico e dirigente. Com um currículo recheado com cerca de 30 títulos na carreira, Abel Braga sente falta de um troféu específico, que bateu na trave em dois anos consecutivos: a Copa do Brasil. Ele guarda uma mágoa por não ter conseguido faturar o caneco. Em 2004, foi vice pelo Flamengo para o Santo André. No ano seguinte, a medalha de prata veio ao perder para o Paulista com o Fluminense. Abelão relembrou com aperto aquelas derrotas.

– O Santo André era muito bem dirigido, estava com um coletivo forte, time bom. Mas, não era time superior ao Flamengo. Não deu nem cinco minutos, nós perdemos o Robson, aquele volante menino de 17 anos. E ele era fundamental ali. Depois, o Fluminense é uma coisa. Lá em Jundiaí, aquilo foi muito atípico porque também perdemos muitos gols. Perdemos o jogo. Perdemos alguns gols que podia liquidar. Aí, depois eu não tinha o Maracanã. Fomos para São Januário. Os caras fecharam bem e acabou 0 a 0. Mas aquilo ali foi tudo aprendizado, entendeu? O primeiro jogo em Jundiaí com o Fluminense era para ter ganho. O jogo em São Januário nós dominamos sem criar. Agora, o ano anterior com o Flamengo aqui no Maracanã, jogamos muito mal. Não nos deram nenhuma hipótese. Não estou dando desculpa porque eu estou falando que não merecemos nada. Jogamos muito mal, os caras foram melhor. Mas, a contusão do menino pesou muito.

Rumo à glória eterna em 2006

Após os vices de 2004 e 2005, Abel Braga viveu uma temporada gloriosa com o Internacional em 2006. O Colorado foi campeão da Libertadores e do Mundial de clubes naquele ano ao superar o Barcelona de Ronaldinho Gaúcho na decisão. Autor do gol do título mundial, Adriano Gabiru quase não foi convocado para o torneio. O técnico bancou a ida do atleta, que era pouco utilizado nos jogos. Gabiru provou o seu valor e foi decisivo.

Na preparação para o duelo contra o Barcelona, a comissão técnica descobriu dois pontos para tentar anular o jogo envolvente dos espanhóis. O primeiro foi analisar os gols sofridos pela equipe campeã da Liga dos Campeões para buscar explorar os pontos fracos do time. O segundo foi anular Thiago Motta em campo, responsável pela saída de bola do Barcelona.

– Nós queríamos mostrar onde eles sofreram os gols e não mostramos nenhum vídeo que eles ganharam. Mostramos três que eles perderam. Porque é a hora que eu ia puxar no vestiário. Depois que eu incendiei, o Fernandão incendiou. Se vai ter medo de jogar, nem entra. Fica aqui. Olha aqui esse gol, sempre no mesmo lugar. Descobrimos um detalhe. Aí, foi o Roberto (Moreno, observador do Inter). Todas as bolas que saem da defesa do Barcelona passam no Thiago Motta. Ali começava tudo. Ele ficava ali no meio dos dois zagueiros e distribuía o jogo. Falei: Fernandão, esse jogo vamos deixar o Iarley e o Pato solto. Sem bola, eu não quero que tu roube bola do Thiago Motta. Só quero que fique perto dele para ele não receber – destacou Abel.

História com a Máfia em Marselha

Abel Braga recordou uma história quando assumiu o comando do Olympique de Marselha, em 2000, e passou por uma experiência inusitada na França. Quando chegou à cidade de Marselha, o motorista do clube o levou para visitar casas para decidir onde morar, mas em municípios do entorno. Por quê? Porque quem trabalhava na cidade tinha o costume de não morar em Marselha pelos perigos por causa da torcida e da máfia local.

Dito isso, o cartão de visitas na cidade foi uma experiência inesperada com a máfia logo em sua chegada. Uma cortesia bancada com um jantar pago em um restaurante, indicado pelo então capitão do time Patrick Blondeau.

– Depois do jogo, pedi ao capitão do time: “Patrick, eu quero jantar.” Já era tarde, era 21h. Aí, ele falou: vai num assim e assim. Fui. Cheguei lá, não tinha placa nenhuma, vi gente dentro. Aí, fiquei com a minha mulher esperando. Eu e ela só. O garçom veio e abriu. Pedi um vinho, comemos uma carne. Tranquilo, sem pressa. “L’addition, s’il vous plait” (a conta, por favor). Pode ir embora. Tá pago. O pessoal ali pagou. Aí passei, né? Boa noite. Muito obrigado pela gentileza, fui embora. No dia seguinte, no treino, o Patrick, capitão: “e o jantar?” Eu falei: aconteceu isso. “Não, eu sei. Tava bom?” Só pedi uma carne. “Não pagou, né?” Falei: não, pagaram. Falou: “eu sei, meus amigos da máfia”. Cara, tu não diz.

A experiência durou pouco na França, mas Abel Braga relembra com humor como foi comandar um time onde a máfia e a torcida estavam conectadas naquela época 

Seleção ideal

Na sua carreira de muitas décadas como treinador, Abel Braga comandou centenas de jogadores. O ge convidou o ex-técnico a montar a sua seleção ideal, com os 11 melhores atletas por posição entre seus comandados. Confira como ficou o time abaixo:

Bate-pronto

No quadro, o convidado dá respostas curtas e rápidas sobre tópicos da carreira no futebol. Abel Braga elegeu Fernandão como maior líder de vestiário que comandou e colocou o título do Mundial em 2006 como o mais importante. Joel Santana era o treinador mais temido nos embates de Abel. A torcida do Corinthians foi escolhida como a pior de enfrentar. Veja tudo abaixo:

  • Maior amigo no futebol? Júnior.
  • Jogo marcante da carreira de treinador? Inter 1 x 0 Barcelona (2006).
  • Título mais importante? Mundial de clubes de 2006.
  • Derrota mais dolorida? Olímpia 3 x 2 Inter no Beira-Rio (1989).
  • Time que mais gostava de vencer? Flamengo.
  • Time que você mais temia enfrentar? Time do Joel Santana. Qualquer time do Joel
  • Maior craque que você treinou? Diaky, do Al-Jazira.
  • Maior craque você enfrentou? Fenomenal. Zico.
  • Jogador mais resenha que você comandou no vestiário? Um dos caras mais engraçados. Um dos melhores jogadores, entra na minha seleção de jogadores que dirigi, Fabiano Eller.
  • Jogador que mais te dava trabalho? Dava umas fugidas ali… Josimar, do Botafogo. Eu joguei com ele, fui treinador dele, já fui pegar ele em casa para ir para o treino.
  • Jogador líder de vestiário que mais te ajudou? Fernandão.
  • Principal jogador que você revelou? Alexandre Pato.
  • Torcida que faz mais diferença em campo: a favor ou contra? Contra é o Corinthians. Esquece. É do primeiro ao último minuto. Aquilo lá contra é a pior.
  • Melhor dirigente que trabalhou junto? Agathyrno da Silva Gomes.

Íntegra da entrevista

Como era um dia típico de trabalho seu. Como era a sua rotina? Com quem você conversava? Quais departamentos você tinha que abordar antes de cada treino, de cada jogo? Como que era isso no dia a dia?

– É complexo. É complexo porque todo mundo reclama de excesso de jogo. Para mim, tem diferença treinador para o técnico. Treinador para mim treina. O técnico engloba muita coisa. O mais importante quando você reclama que não tem tempo, você tem que se apegar a detalhes. Hoje, todo clube tem uma série de departamentos. Ele te dá ferramentas. Para quem não vai ter tempo mostrando durante três, quatro dias – que seria o ideal para a equipe – essas ferramentas são fundamentais. Então, hoje você tem que estar inserido num contexto porque não existe. Para mim, nunca existiu. Ah, esse cara aqui joga 4-2-3-1, 3-5-2. Meu time então joga só 4-3-3. Eu sempre de dois caras abertos, aquela coisa toda. Mas, isso muda.

– Então, pra você dizer é assim. Não existe. Hoje, você vai ter que voltar aqui por dentro porque eles vão ter essa prioridade por dentro no meio-campo para ter jogador a mais, aquela coisa toda. Se você não tiver inserido toda essa ferramenta que você tem em mãos e a principal delas – são várias coisas importantes, mas para o técnico a mais importante é o pessoal do scout. Porque a maneira que você cobra deles. Eu quero isso. Põe esse time atacando. Vai resumir aquilo ali em cinco minutos. Uma vez defendendo, ele vai inserir aquilo em mais cinco. São 10. Me dá bola parada ofensiva. Ele resume aqueles 90 minutos em um.

Como jogador e treinador, você atravessou muitos momentos diferentes no futebol. A tecnologia, a quantidade de informações disponíveis foi se aprofundando de uma maneira absurda. Então, chega um momento da carreira, que um departamento de análise, de scout, de análise de desempenho, ele é capaz de te fornecer uma quantidade infinita. Há um ponto em que informação demais atrapalha? O que você queria receber? Como que era essa combinação?

– Comigo, o estilo de trabalho foi sempre assim. Primeiro, tinha que ter uma afinidade com desempenho, análise, aquela coisa. Nunca era feito sobre um jogo. Era feito sobre três jogos.

Do adversário?

– Do adversário. Sempre.

Os três últimos?

– Os três últimos, os quatro últimos. Depois, eles tinham que me dar aquele time atacando, aquele time defendendo. Se tivesse algum tipo de mudança. Você tem que levar o seu plano B. Se você tem aquilo tudo em mãos, você não tem como hoje. Você jogou hoje, amanhã tu chega no clube. Beleza, nem olho. O cara nem vai pro campo. O cara fica ali no vestiário, fazendo fisioterapia. No dia seguinte, vai chegar no campo. Tira Manoel porque senão vai estourar. Caramba, cara. No outro dia, depois do jogo, eu estava subindo São Januário com os caras na minha costas. Eu estou operado aqui com 10 parafusos no ciático. Hoje, você tem tudo isso. Eu tenho que estar afinado contigo. Eu tenho que saber exatamente o que eu quero – já conversei contigo quando eu cheguei no clube ou quando você chegou. É assim que eu gosto. Eu não gosto desse tipo de passar informação demais porque não vai rolar.

O jogador consegue absorver informação?

– Consegue.

Mas tem um limite?

– Qualquer um tem um limite. Você acabou de colocar na pergunta se eu, com o tanto de informação, vou me perder. Eu não vou conseguir passar para os meus jogadores aquele tanto de informações. Você vai ficar falando tudo aquilo que foi passado pra você, o cara vai ficar dormindo na tua frente. Eu já dormi em palestra de treinador. Uma hora de palestra, cara?

Tem um tempo ideal?

– Não sei. Você me perguntou como que era feito. Segunda-feira eu já cheguei sempre duas horas antes do treino. Treina quem não jogou. As duas horas antes eu fiquei vendo o adversário de quarta. Terça posicionava a minha equipe só para eles suarem um pouquinho, mas para ver como jogava o adversário. Nada de véspera de jogo, vídeo. Nada disso. No dia do jogo, uma hora antes do ônibus sair, o jogador faz o último lanche. Sobe. Não falava nem cinco minutos e mostrava o vídeo. Treinamos ontem. Olha aqui o posicionamento. Para depois o cara não dizer que não treinei ou que eu não falei. Aí, chegava no vestiário. Quadro negro. Os caras trocavam de roupa. Eu sempre gostei – aprendi isso com o Fantoni – de fazer a palestra ali. Só que o Fantoni. A gente chegava no ônibus, sentava e ele falava. Eu não. Gostava como? Jogador chegasse. Tirasse a roupa. Botava a chuteira. Está pronto para ir para o aquecimento. Eu calculando: 10 minutos. Eu mostrava o quadro: não esqueça isso aqui. Essa jogada aqui é mais importante. Aí, o resto só puxava no mental. A motivação. O cara dali, ele não vai escutar mais nada. Ele não vai mais tocar no telefone. Ele não vai fazer mais nada.

Fonte: GE

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